domingo, 1 de agosto de 2010

Medéia Contemporânea


                                         Inanna & Ereskigal -  Hrana Janto.


E decidiram por conceber. Ainda que por descuido, nenhum grande problema poderia surgir, afinal, bastava ter fome para viver. Andava-se em tempos de fartura, por todo lado encontrava-se comida. A lógica então era simples: alimento não havia de faltá-la, bastava apenas ter fome! Era assim que pensavam. 
Nos primeiros anos de vida nada diferente ocorrera. Alimentou-se com um pouco de tudo. O leite, o pão, a carne. Como os pais a orientaram. Afinal, não era questão de ser bom ou mau, eram forças de condicionamento e direcionamento. Foi quando a consciência a dominara que os caminhos tomaram direção incomum. A menina não sentira mais fome. Todos ficaram inquietos. Mas como? Ter fome era a única coisa necessária para viver! Ninguém pôde entender.  
Começaram a se preocupar, pois os dias passaram e a menina não comera. Tentaram despertá-la a fome dedicando-se no preparo de receitas saborosas. Qualquer mortal ficaria com a boca sobre um rio de saliva. Mas não ela.
Como moravam numa cidadela onde todos se conheciam, rapidamente o comentário se espalhou. Chegaram as visitas. Não poderia se acreditar em tamanha ocorrência sem vê-la. As donas vizinhas, prestativas como nunca, apressaram-se na oferta de pratos e mais pratos, pois se dizia que a mãe cozinhava mal. Não haveria outra explicação. Apesar da disposição em aceitar as condolências, absolutamente nada a desespera fome.
A fraqueza foi inevitável. Logo o curandeiro fora chamado. Com os instrumentos necessários a menina não morreria, pois a comida a chegaria sem a necessidade da boca. Seria direto para o coração. Sofrera muito com o procedimento, mas compreendera sua necessidade. Este então foi o segundo motivo da manifestação pública. Algo jamais visto ou pensado. O fato chamara a atenção até da cidade vizinha. A menina não se incomodava em receber os estranhos. A família, no entanto, sentia-se constrangida. Não era por menos, a menina não sentia fome!
Com o decorrer do tempo a maioria se tornou convencida. A menina era diferente e não teria fome. Os comentários cessaram. As visitas e os pratos deixaram de chegá-la. E ela estava bem, pois todos aceitaram sua condição.
Morava ao lado certa senhora que receberia o neto residente em longínquo centro. Cidade que nunca se ouvira falar. Gerava medo só pelo nome. Contentíssima e solidária, a vizinha procurou pela mãe da menina a fim de contar a boa nova, pois não era apenas um neto a chegar. O garoto não tinha fome. O garoto não tinha fome! A mãe logo perguntou sobre o aparato utilizado pelo menino, tentando estabelecer intimidade, mas a avó pouco sabia sobre os detalhes. Decidiram então que se reuniriam todos para um encontro entre a menina e o neto. Eles se entenderiam, pois pelo que se sabia todo mundo tinha fome.
Passado algumas semanas o menino apareceu com a mãe. Fora muito bem recebido pela avó, que estava preocupada em constrangê-lo por receber sua filha com as melhores guloseimas preparadas a punho. Mas ora, todos tinham fome. E ele ... ele logo se afeiçoaria com a vizinha estranha.
O dia da reunião chegou. Todos ansiosos pela conferência. Como esperado, a casal logo se reconheceu. Reconhecimento imediato! Eram dois. Os dois não tinham fome. Conversaram sobre suas aflições, condições e muitos outros temas. Não faltara assunto.
Com o fim da noite se aproximando recolheram-se para a casa o menino, seu mãe e avó. Todos satisfeitos pela normalidade de algo tão estranho. Por certo momento se pouparam das más sensações nas quais eram frequentemente submetidos.
Ao chegar a sua cama, carregando todo o peso do aparato, pois não podia estar um segundo sem a parafernália, a menina concentrou-se em identificar seus sentimentos. Lembrou-se do menino e sentiu pena de si mesma. Até o momento não havia refletido sobre o fato. Mas seu fato tornara-se realidade: despido em sua frente. A menina não foi capaz de esvair seu pesar. Quanta dor sentia. Adormecera de tanto chorar.
No dia seguinte, com o sol invadindo sua janela, decidiu que teria fome. Não contou a ninguém, pois tinha medo que falhasse. Ainda assim adiantou-se em se livrar dos equipamentos, pois de alguma forma sabia que não os precisaria mais. Caminhou até a cozinha e manipulou os alimentos repetindo o que observara sua mãe fazer outrora. Depois de um tempo o prato ficou pronto: pão com alface, tomate e patê de ervas. A menina admirou-se com a beleza das cores. Não precisou de muita concentração. Quando percebeu estava dominada pela fome que por muito tempo não sentira. Gritou e correu pela casa com a boca suja de patê. Todos choravam, riam, não sabiam como agir. Afinal, a menina tinha fome! E era isto o necessário para viver.
Ninguém tivera coragem de perguntar o que havia ocorrido. Acharam sensato poupá-la para evitar uma recaída. Afinal, ela tinha fome e isto bastava. Antes de dormir, como na noite anterior, porém sem o peso que a perseguira por anos, pensou sobre porque sentira fome. Sem delonga obteve a resposta. Sim, como não raciocinara antes? Ela tivera fome apenas daquilo que pudera manipular. De outras mãos não a serviria. Sua razão e sentimentos agora estavam em sincronia. Ela tinha fome, como todos. Apenas uma diferença: precisava manipular seus alimentos.
Por muito tempo tudo ficara normal. A felicidade foi intensa e a vizinhança já soubera do ocorrido. A curiosidade não foi febril, mas ainda assim recebera algumas visitas. Passado um mês chegou à porta da casa, enquanto apreciavam um belo banquete, a vizinha cujo neto não tinha fome. Estava muito empolgada. Comunicou com um belo sorriso e voz solene que o neto alcançara a fome. Estava livre da maldição, pois tivera sido motivado pelas notícias da avó em relação à amiga. A família demonstrara demasiada felicidade, levantando-se prontamente para cumprimentar a vizinha. Neste momento a menina ficou atônita, com o olhar fixo sobre a comida disposta na mesa. A partir de então deixou de ter fome pelo resto de sua vida.



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